Na mídia
Fonte: Valor Econômico
Gabrieli Santos Dias é moradora do Jardim da Conquista, no extremo leste da capital paulista. Trabalha como assistente administrativa em uma agência de viagens na
avenida Faria Lima, centro financeiro da cidade, onde precisa estar quatro dias por semana - em um, trabalha de casa. São cerca de 30 quilômetros na ida, outros 30 na
volta.
“Preciso estar na agência às 9h, e para isso acordo às 5h30 e saio de casa às 6h30”, diz. “Pego um ônibus que me deixa perto da estação São Mateus do monotrilho. Depois faço uma baldeação para a linha 2-Verde e mais uma baldeação para a 5- Lilás. Após percorrer algumas estações, desembarco e pego mais um ônibus, que roda um pouco e, enfim, me deixa no trabalho.”
Já seria uma rotina difícil se os vários meios de transporte que ela tem de usar fossem todos rápidos. Mas, muitas vezes, não são. E isso ocorre, entre outros motivos, porque as ruas estão cada vez mais congestionadas com carros.
“O Brasil historicamente consolidou uma cultura de forte dependência do automóvel como principal meio de transporte”, diz André Pereira de Morais Garcia, advogado do escritório Duarte Garcia, Serra Netto e Terra e estudioso de direito ambiental.
“Esse cenário foi recentemente reafirmado pela Pesquisa Origem e Destino do Metrô, divulgada em 11 de fevereiro deste ano. Ela aponta que 51,2% da população de nossas grandes cidades usa o transporte individual como meio de deslocamento preferencial.”
A preferência pelo individual impõe um desafio para o transporte coletivo. Porque, ao mesmo tempo que é necessário investir para melhorar o serviço e assim torná-lo mais atraente aos passageiros, aliviando o trânsito (e contribuindo para a redução de emissões), uma demanda menor diminui receitas necessárias para ajudar a financiar os investimentos.
O que motiva tanta ênfase ao transporte individual em um país de renda média-baixa como o Brasil?
Fernando Luiz Lara vem há muito se debruçando sobre a questão. Ele é professor de história e teoria da arquitetura na Escola de Design Weitzman, ligada à Universidade da Pensilvânia, nos EUA.
“Temos em relação aos automóveis um desafio muito semelhante à luta contra o tabagismo: um hábito profundamente entranhado na consciência social do planeta inteiro, mas que diante do mal que causa à sociedade precisa ser desestimulado”, diz.
Para o advogado Morais Garcia, há um fator cultural enraizado no Brasil, “no qual ocarro é um símbolo de status e poder”. “Isso reforça a percepção de que o transporte
público é uma opção de classes sociais de baixa renda. A consequência é termos cada vez mais automóveis nas ruas e cada vez mais congestionamentos.”
“O Brasil é o segundo país com pior trânsito no mundo, de acordo com pesquisarealizada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico”, diz Sérgio Avelleda, consultor em mobilidade urbana para o Banco Interamericano de Desenvolvimento. “Pior: somos o terceiro país que mais mata no trânsito, segundo dados da Organização Mundial da Saúde.”
São Paulo, Recife e Curitiba são as três cidades brasileiras com os piores trânsitos, segundo o TomTom Traffic Index 2023. O Rio aparece em sétimo lugar.
Avelleda observa que na capital paulista o desafio é o gigantismo. São Paulo e sua região metropolitana somam nada menos que 39 municípios e 23 milhões de pessoas. Isso significa que 39 prefeitos administram o trânsito local, cada um com suas próprias ideias sobre como fazê-lo. Sem contar o governo estadual, que também cuida da questão. Segundo um levantamento da Rede Nossa São Paulo, os deslocamentos diários na metrópole consomem, em média, 2 horas e 25 minutos.
No Rio de Janeiro, além do problema de governança metropolitana, como em São Paulo, existem os desafios sociais e geográficos de uma cidade com enormes contrastes urbanísticos. “Também há no Rio uma grande dificuldade de equacionar o financiamento do transporte público”, diz Avelleda. Ele nota que o preço do metrô carioca, que sobe em abril para R$ 7,90, o torna pouco acessível a uma boa parcela da população.
Um metrô acessível é importante porque, para o deslocamento em grandes cidades, talvez não se tenha concebido até hoje algo melhor, argumenta Sérgio Ejzenberg, diretor da S. Ejzenberg Engenharia Consultoria.
“Apenas o sistema de metrô convencional de alta capacidade é capaz de atender à demanda de milhões de deslocamentos por dia que há nas metrópoles”, diz. “Cidades como Londres e Nova York têm aproximadamente 50 quilômetros de linhas de metrô para cada milhão de habitantes. São Paulo tem só 7 quilômetros de linhas de metrô para cada milhão de habitantes. É muito pouco.”
Pode-se argumentar que Londres e Nova York são metrópoles de países ricos, o que não é o caso de São Paulo. Mas a Cidade do México também não fica em um país rico, e seu metrô conta com 200,9 quilômetros de extensão. São Paulo tem 104,4 quilômetros de malha metroviária.
Há várias partes do metrô paulistano que estão em obras e/ou sendo expandidas no momento: as linhas 2-Verde, 4-Amarela, 6-Laranja, 15-Prata e 17-Ouro são exemplos.
Ainda assim, Rafael Benini, secretário de Parcerias em Investimentos do Governo do Estado de São Paulo, deixa claro que aumentar a malha metroviária não é fácil.
“Cada quilômetro de metrô que abrimos custa cerca de R$ 1,2 bilhão. Trata-se de um modal extremamente importante para a circulação urbana, mas não há como negar que é algo caro e demorado de ser feito”, diz.
“Temos demandas essenciais em se tratando de transporte público? É evidente que sim”, afirma Benini. “Mas também temos demandas a serem atendidas na saúde, na educação, saneamento e em outras áreas.”
Em muitos outros pontos do Brasil, a dificuldade não são linhas de metrô reduzidas, mas o fato de que elas não existem. Somente sete cidades brasileiras têm esse serviço: Salvador, Fortaleza, Recife, Brasília, Belo Horizonte, Rio e São Paulo. As demais dependem de linhas de ônibus para que a população se locomova.
Além de estarem sujeitas aos congestionamentos do trânsito, as linhas de ônibus podem oferecer pouco conforto, seja por veículos antigos ou falta de ar-condicionado.
Em Campinas, no quente interior paulista, dos cerca de 900 ônibus em circulação, somente 280 contam com o equipamento - e mesmo nesses não há obrigação legal de mantê-los ligados.
Sobre esse assunto, a Empresa Municipal de Desenvolvimento de Campinas (Emdec) informou em nota que “a administração municipal prepara a nova licitação para a concessão do transporte coletivo, através da qual muitas situações atualmente vividas no transporte público serão sanadas”.
O engenheiro Luiz Fernando Romano Devico presta assessoria técnica e consultoria em projetos de transporte. Ele foi o responsável pelo desenvolvimento da Faixa Azul
exclusiva para motos na cidade de São Paulo, uma tentativa de diminuir a quantidade de acidentes envolvendo motociclistas.
Para Devico, é o ônibus em si que está obsoleto para uso no transporte urbano. Casos de má gestão acontecem, mas a inadequação aí seria maior: estrutural, não
conjuntural.
“A questão, basicamente, é que o transporte público via ônibus nas grandes cidades é um modal ultrapassado, de capacidade apenas média. Ele não apresenta condições de atender às demandas reais de locomoção nas metrópoles”, afirma.
“Ônibus são um equipamento útil e relevante no transporte urbano”, diz Benini. “O erro está em colocá-los para atravessar a cidade inteira, para percorrerem longas
distâncias. A função da rede de ônibus paulistana, por exemplo, precisa ser prioritariamente levar as pessoas até as estações do metrô mais próximas.”
A atração de usuários para o transporte público é um ponto não apenas complexo, mas intrigante. Pois, se analisados alguns acontecimentos dos últimos anos, sistemas públicos de transporte não deveriam estar tão lotados hoje. Isso porque, em linhas gerais, sua quantidade de passageiros vem caindo no Brasil.
Um marco desse processo deu-se em fevereiro de 2020, quando a covid-19 chegou ao Brasil. Naquele ano e no seguinte, milhões de brasileiros passaram a trabalhar a partir de suas residências. Quando, no início de 2022, a pandemia enfim amainou, muitas dessas pessoas continuaram com o trabalho remoto ou em sistema híbrido.
Parte dos sistemas de transporte público no Brasil jamais voltou a registrar a demanda de antes da pandemia.
Sendo assim, como se explica que os ônibus, por exemplo, sigam circulando lotados em tantas cidades brasileiras?
A covid-19 foi um marco da queda de passageiros no transporte público - mas não o início dessa queda. “O transporte coletivo urbano no Brasil vem perdendo passageiros já há muitos anos”, diz Avelleda. “O home office, e também o ensino a distância, contribuíram sim para isso, mas não explicam todo o processo.”
Ele concorda que a pandemia acelerou tal tendência, mas aponta: “O que mudou após a covid-19 é que ficaram nítidas as limitações dos atuais modelos de remuneração das empresas e a necessidade de subsídios ao transporte público”.
No entanto, a pergunta permanece: se o transporte coletivo perde passageiros há anos, por que os ônibus, em especial, seguem lotados? Possível motivo: porque, cada vez que as linhas desafogam um pouco, empresas e cidades tiram veículos da rua para compensar a perda de receita. Resultado: as linhas voltam a ficar congestionadas.
“Quanto mais passageiros param de usar o serviço, mais difícil fica sua manutenção, dado que em grande parte dos municípios o sistema é mantido unicamente pela receita tarifária”, afirma Avelleda. “Para compensar a perda de usuários, se reduz a oferta de veículos, o que eleva os intervalos entre os ônibus. E também aumentam as tarifas. Aí os ônibus voltam a ficar lotados, além de caros. Isso termina por afastar uma nova leva de pessoas do sistema - e tudo recomeça.”
É um círculo vicioso, o qual desemboca em mais carros nas ruas. Muitas vezes carros velhos, poluentes. Ou motocicletas, arriscadas e também poluentes.
“Hoje no Brasil existem mais de 110 milhões de veículos automotores individuais registrados”, diz Clarisse Cunha Linke, diretora-executiva do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP Brasil). “Congestionamentos, sinistros de trânsito, aumento no tempo de deslocamento, aumento das emissões de gases de efeito estufa e poluentes locais estão entre os efeitos negativos desse número tão alto.”
Ela observa que a taxa de motorização nas capitais brasileiras triplicou nos últimos 20 anos. “O uso elevado de veículos particulares ocupa grandes áreas das vias
públicas e afeta diretamente o tempo médio de deslocamento de toda a população”, diz. “Ou seja, os congestionamentos prejudicam não só quem está nos carros, mas também quem está nos coletivos.”
Contra o número cada vez maior de carros particulares circulando pela cidade, em especial nas já abarrotadas regiões centrais dos municípios, há quem cogite um antídoto radical: o pedágio urbano.
“O pedágio urbano nada mais é do que uma taxa cobrada para a entrada em regiões centrais das cidades, cujo objetivo é desestimular o uso de veículos individuais, reduzir os congestionamentos, incentivar o transporte público e melhorar a mobilidade urbana”, diz Marcus Quintella, diretor da FGV Transportes.
Segundo ele, o primeiro pedágio urbano foi implantado em Cingapura em 1975 e está em vigor até hoje, com enorme sucesso. Londres adotou o sistema em 2003 e Estocolmo, na Suécia, em 2006. Oslo, na Noruega, e Milão, na Itália, também possuem esse sistema, e Nova York o está implantando.
Um sistema assim funcionaria igualmente bem em Manaus ou Goiânia? Quintella não é otimista. “A ideia é boa, mas entendo que a implantação do pedágio urbano em qualquer cidade tem como premissa a existência de um sistema de transporte público abrangente, regular, confortável e integrado de forma física e tarifária. Só assim as pessoas de fato passam a deixar seus carros em casa. Infelizmente, este não é o caso das cidades brasileiras.”
Sem contar o fato de que muitas pessoas podem não dirigir, mas recorrem aos veículos de aplicativo. O Brasil é líder mundial em número de motoristas e viagens na Uber, uma empresa americana.
“Nos últimos anos temos visto estudos mostrando que a presença de mais carros de aplicativos nas ruas traz maior congestionamento e poluição”, diz Linke. “Ainda que tais carros ofereçam conveniência a curto prazo, eles não resolvem os problemas estruturais da mobilidade urbana e podem, na verdade, piorá-los a longo prazo.”
A Uber discorda. “Diversas pesquisas e os dados internos de viagens da Uber vêm demonstrando que o serviço complementa e incentiva o uso do transporte público por facilitar o acesso das pessoas às linhas de ônibus ou metrô, seja para ir de casa à estação, seja para ir do último ponto até a porta de casa”, diz empresa em nota
enviada ao Valor.
O transporte por aplicativo também suscita debate por sua intenção de disseminar o serviço de moto. Em São Paulo, Uber Moto e 99 Moto estão suspensos, com o prefeito Ricardo Nunes afirmando que a cidade “não está preparada para esse tipo de serviço” e que haveria uma “carnificina” por causa de acidentes em caso de liberação.
De acordo com um levantamento feito pelo Departamento Estadual de Trânsito, as mortes de motociclistas na capital paulista subiram cerca de 20% no ano passado: foram 483, ante 403 em 2023. No total, as mortes em acidentes com motos correspondem a 37% do total de óbitos no trânsito paulistano.
No Rio, três em cada quatro ocorrências de trânsito atendidas pelo Corpo de Bombeiros em 2025 envolviam motos. Foram 20.877 de um total de 27.161. Isso corresponde a um acidente com moto a cada 25 minutos na cidade.
A 99 defende o transporte de pessoas por motos via aplicativos. “O serviço é permitido por lei. A companhia está alinhada ao entendimento de 20 decisões judiciais em todo o Brasil: o de que cabe ao município regulamentar a atividade com regras específicas para cada localidade, mas não proibir um serviço que, insistimos, é permitido por legislação federal e opera em mais de 3.300 cidades”, diz a empresa, também em nota.
Consultada a respeito, a Prefeitura de São Paulo afirma em nota: “A Prefeitura informa que, para estabelecer a regulamentação desse tipo de transporte na capital, instituiu um grupo de trabalho com a participação das operadoras 99 e Uber, além de especialistas da CET, Secretaria Municipal de Saúde, Corpo de Bombeiros, SPTrans e Abraciclo, entre outros, que concluiu que a implantação deste modal seria um grande risco para a saúde pública, envolvendo a integridade de transportadores e usuários, com potencial aumento no risco de acidentes”.
“A Secretaria Municipal da Saúde (SMS) informa que o município gastou cerca de R$ 35 milhões por ano na linha de cuidado ao trauma com pacientes de acidentes de moto.”
Paulo Guimarães, CEO do Observatório Nacional de Segurança Viária, é cético quanto ao efeito da mera proibição. “Se somente proibir resolvesse o problema, não teríamos pessoas excedendo os limites de velocidade e dirigindo após beber álcool”, diz. “O caminho radical da proibição é sempre o pior a ser trilhado, ainda mais quando a decisão não tem base em dados e evidências, além de confrontar uma demanda social: afinal de contas, temos aqui passageiros querendo ser transportados por motos e motociclistas querendo transportá-los.”
Guimarães recomenda: “Precisamos ter a habilidade para levantar as evidências a partir de dados e fundamentar uma tomada de decisão a respeito”.
A busca da locomoção via aplicativos nasce, em parte, da falta de transporte público regular, confortável e barato - e também da falta de segurança.
Metrô e ônibus não deixam necessariamente seus usuários na porta de casa ou do trabalho. Parte das viagens precisa ser feita a pé. Muitas pessoas recorrem aos apps de locomoção para não terem de caminhar algumas quadras. Uma pesquisa divulgada em janeiro deste ano pelo Instituto Locomotiva dimensiona a situação.
O estudo ouviu cerca de mil mulheres das classes C, D e E que andam pela cidade de São Paulo ao menos uma vez na semana. Destas, 97% sentem medo de sofrer alguma violência nesses deslocamentos, especialmente importunação sexual (91%), estupro (89%) e assaltos (95%), além de preconceito e discriminação (70%).
“Eu de fato acredito que as crises do transporte público e da segurança urbana no Brasil estão profundamente interligadas. Quanto mais inseguros nos sentimos, menos utilizamos o transporte público, menos caminhamos e menos pedalamos”, diz Linke.
E quanto menos utilizamos o transporte público, mais utilizamos o transporte particular. “O problema do carro está em seu uso excessivo e descontrolado”, diz Ana Zornig Jayme, presidente do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc). “Em áreas urbanas densamente povoadas, como meio de transporte individual, não é sustentável, pois gera uma série de problemas como congestionamentos, poluição e ocupação do espaço público.”
Ela afirma que o setor de transporte, em Curitiba, responde por 66% das emissões dos gases de efeito estufa, mas que somente 6% disso vêm do transporte coletivo. “Os grandes vilões são mesmo os veículos individuais.”
Tatiana Landi é sócia e diretora técnica da Polo Planejamento, situada em São Bernardo do Campo, no ABC Paulista. Ela sustenta que a melhor maneira de incentivar o uso do transporte coletivo é a realização de investimentos pesados no setor. Qualidade e quantidade surtem mais efeito do que campanhas de conscientização.
“Mais do que apelar para o interesse coletivo, as políticas de mobilidade devem focar na melhoria do transporte público de modo a que ele se torne naturalmente a melhor opção para um número cada vez maior de pessoas”, afirma. “Quando há infraestrutura de qualidade, rapidez e acessibilidade, a escolha pelo transporte coletivo se torna lógica - e não um sacrifício.”