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Fonte: Valor Econômico
Queixas sobre aglomeração de entregadores e mau cheiro são recorrentes entre moradores de regiões próximas aos estabelecimentos criados apenas para delivery
O setor que se identifica como foodservice inclui as empresas de refeições fora de casa, de restaurantes a refeitórios ou operações de catering. Mas um de seus grandes motores de crescimento é voltado justamente à refeição em casa.
Isso tem a ver com um elemento que se tornou cada vez mais presente desde que surgiu, em 2017: as dark kitchens, cozinhas industriais montadas para a produção de alimentos destinados à entrega. “O delivery seguirá sendo mais e mais importante”, afirma Simone Galante, CEO da Galunion, uma consultoria em foodservice. “E as dark kitchens [...] vêm para otimizar todo o parque instalado do foodservice global.”
A consultoria de mercado Coherent Market Insights projeta que, em 2030, as dark kitchens movimentarão US$ 157,2 bilhões, mais do que dobrando o total de 2022, que foi de US$ 71,4 bilhões. Segundo o portal Statista, que reúne dados recolhidos por institutos de pesquisa de mercado e estudos setoriais, o mercado global de delivery deve alcançar uma receita de US$ 1,4 trilhão em 2025 e US$ 1,9 trilhão até 2029.
No Brasil, o mercado de bares e restaurantes é estimado em R$ 416 bilhões por ano, de acordo com estudo realizado pela Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas, patrocinado pela Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel).
O Instituto Foodservice Brasil (IFB) estima que o setor teve um total de 2,4 bilhões de transações no primeiro trimestre deste ano. Destes, 1,04 bilhão foram de refeições no local, e o restante para viagem (983 milhões), por drive-thru (29 milhões) ou por delivery (377 milhões). É essa parcela dominante de delivery e para viagem que mostra o papel estratégico das dark kitchens.
Foi em abril de 2017 que as primeiras dark kitchens, da forma como as conhecemos, surgiram em Londres. Na ocasião, os fundadores da empresa de entrega de comida Deliveroo, Will Shu e Greg Orlowski, tiveram a ideia de que poderiam vender mais rapidamente e em maior quantidade se, em vez de dependerem de restaurantes, criassem cozinhas industriais orientadas para o delivery.
Essas cozinhas chegaram ao Brasil muito rapidamente, já em 2017. “Foram impulsionadas à época pelo crescimento dos aplicativos de entrega no país”, diz Joaquim Saraiva, líder executivo da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes em São Paulo (Abrasel/SP).
A disseminação das dark kitchens nem sempre é pacífica. Moradores de casas e apartamentos próximos delas por vezes as acusam de causarem um odor desagradável, de barulho e de deixarem gordura no ar, a qual fica impregnada nas roupas. Associações de moradores já acionaram a Justiça contra elas.
“A instalação de dark kitchens é proibida em bairros estritamente residenciais, porém permitida em bairros mistos. No entanto, muitas vezes esses bairros ditos mistos são majoritariamente residenciais. Aí surge um embate com os moradores”, diz Alessandro Nicola, professor de gastronomia e gestão de foodservice no Senac EAD.
“Por outro lado, são esses mesmos moradores que, quando fazem seus pedidos de alimentos, querem ter muitas opções e rapidez na entrega”, complementa.
Ainda mais controversa do que o mau cheiro e o barulho é a questão dos trabalhadores que retiram as refeições nas unidades e as levam aos clientes. Sem entregadores, as dark kitchens não têm como existir; ainda assim, a relação entre elas e os entregadores, e de ambos com moradores, não é livre de polêmicas.
Entregadores comumente chegam às dark kitchens para pegar o pedido antes que ele esteja pronto, o que os força a esperar. Muitos desses estabelecimentos não dispõem de estrutura de suporte a essas pessoas, como cadeiras para que descansem enquanto aguardam. Resultado: motoboys sentados (às vezes, deitados) nas calçadas, motocicletas paradas bloqueando a passagem — e queixas dos moradores.
“Não tem nada pior para um entregador do que chegar em uma dark, como chamamos, e o pedido ainda não estar pronto. Infelizmente, acontece muito”, afirma Nicolas Souza Santos, entregador e dirigente na Associação dos Motoboys, Motogirls e Entregadores de Juiz de Fora (Ammejuf), bem como membro da Aliança Nacional dos Entregadores por Aplicativos (Anea).
A característica desses estabelecimentos de não disporem de estrutura de atendimento é um fator que agrava a espera, diz. Entregadores não contam, por exemplo, com banheiros. “Não temos nem tomada para recarregar o celular enquanto esperamos a refeição que vamos transportar, o que é cruel: sem energia, o motoboy não tem celular funcionando, e sem celular funcionando ele não tem como trabalhar”, explica.
“O problema mais recorrente é mesmo a concentração de entregadores, com motocicletas estacionadas ou circulando em ruas que geralmente têm pouco movimento”, afirma Célio Salles, membro do Conselho de Administração Nacional da Abrasel e estudioso das dark kitchens. “Questões como exaustão e depuração do ar devem ser tratadas conforme a norma vigente. No caso específico de São Paulo, a questão dos condomínios de cozinhas e da circulação de entregadores já está sendo discutida localmente.”
Ele ressalta que dark kitchens não são tão comuns em outras cidades quanto em São Paulo. Segundo um estudo do Laboratório Multidisciplinar em Alimento e Saúde da Unicamp, dois anos atrás elas já somavam um terço dos restaurantes da capital paulista registrados na plataforma iFood.
Em São Paulo, vigora o Decreto Municipal nº 62.365/2023, de maio de 2023, uma das mais abrangentes leis de regulação de dark kitchens do país. O advogado Douglas Nadalini, sócio do escritório Duarte Garcia, Serra Netto e Terra, especialista em direito ambiental e ESG, nota que as dark kitchens também precisam atender aos requisitos sanitários estabelecidos na Portaria Municipal nº 2.619/2011, que tratam de estrutura física, ventilação e higienização de ambientes, equipamentos e utensílios, entre outras coisas.
É um mercado que tem atraído diversas fabricantes de equipamentos, como a Prática Produtos SA, de Pouso Alegre (MG). A Prática fabrica, entre outros, fornos de alta performance, como os speed ovens, que somam micro-ondas, convecção e ar quente em um único equipamento.
“Dark kitchens exigem densidade produtiva em espaços compactos, eficiência energética, baixo tempo de preparo e tecnologia que permita consistência e controle sobre o produto final”, diz o CEO da Prática, André Rezende. Ele estima que entre 10% e 15% dos speed ovens feitos pela Prática sejam direcionados a dark kitchens. Isso representa algo entre 150 e 200 equipamentos por mês.
Outra fabricante de máquinas para dark kitchens é a Hayashi System, de Diadema (SP). “Nossa linha destinada exclusivamente a dark kitchens já responde por cerca de 35% do volume de produção mensal, com tendência de alta”, diz o diretor comercial da empresa, Omar Khozam.
A disseminação de dark kitchens pelo mundo tem feito com que mais cidades procurem colocar limites a como operam, observa Victor Abreu, sócio da Tastefy, que tem sede em Vitória (ES). A empresa é dona de 15 marcas de foodservice — todas, com exceção de uma, funcionando só com dark kitchens.
“Algumas cidades internacionais, como Barcelona, na Espanha, e Amsterdã, na Holanda, implementaram regulamentações rigorosas de zoneamento que restringem dark kitchens a áreas periféricas. Paris também adotou medidas similares, optando por tratar operações de delivery rápido como armazéns”, diz.
“Os principais motivos para essas restrições vêm do impacto urbano que dark kitchens geram: ruído, tráfego de entregadores, dificuldade na gestão de resíduos e a percepção de que elas prejudicam a dinâmica dos bairros onde se instalam.”
Por outro lado, alguns donos de restaurantes tradicionais, que recebem seus clientes presencialmente e cuja cozinha fica no próprio estabelecimento, queixam-se de que não têm como competir com negócios que operam a partir de grandes cozinhas industriais e vendem refeições por preços menores.
“A guerra de preços e promoções entre as empresas dentro do aplicativo acaba premiando com um maior volume de vendas quem tem preços mais em conta”, afirma William Flores da Silva, que opera a rede Will The Burger em Curitiba usando dark kitchens. Ele vende sobretudo pelo iFood.
Mas Tom Moreira Leite, presidente da Associação Brasileira de Franchising (ABF), não enxerga uma concorrência desleal. “As dark kitchens nasceram para suprir uma demanda reprimida por delivery, sobretudo na época da covid-19, quando os restaurantes estavam de portas fechadas e não podiam atender em seus salões”, defende.
“Com a volta à normalidade, os restaurantes já conseguiram recuperar sua receita a níveis anteriores aos da pandemia. Nesse contexto, as dark kitchens seguem como uma importante fonte de faturamento incremental. Há espaço para todos, até porque o segmento de alimentação não para de crescer.”
E nem sempre os preços cobrados pelas dark kitchens são mais baixos. “Na prática, não há distinção de preço tão drástica na maioria dos casos. Essas cozinhas precisam pagar a taxa das plataformas de entrega e investir em embalagens de qualidade”, diz Galante, da Galunion. “O ponto-chave é que as dark kitchens ganham margem no corte de custos. Elas economizam por terem equipe enxuta, operação centrada no delivery e até por não precisarem pagar altos aluguéis.”
É impossível falar sobre as dark kitchens brasileiras sem citar o maior aplicativo de venda de refeições do país: o iFood. Com mais de 400 mil restaurantes cadastrados no país, a plataforma atua como o grande intermediário entre restaurantes, dark kitchens, entregadores e consumidores.
Procurada pelo Valor, a companhia enviou uma nota na qual afirma que não faz parte de sua estratégia operar dark kitchens próprias. Também informa não procurar influenciar a estratégia dos estabelecimentos: “A relação é sempre estabelecida entre o iFood e o restaurante e fica à seleção dos parceiros a escolha por cozinha com salão, dark kitchen ou outros modelos”.
Galante acredita que as dark kitchens devem evoluir no sentido de tornarem-se parte integrante de uma tática de canais múltiplos das marcas, em vez de seguirem como alternativas isoladas, o que muitas vezes são nos dias de hoje.
É uma tática que a pizzaria paulistana La Braciera vem adotando. Seu CEO, Daniel Lucco, diz que as dark kitchens têm se mostrado tão boa aposta que a quinta unidade do tipo do grupo, em Pinheiros, foi inaugurada com 100 m², mais que o dobro das anteriores, nos bairros de Vila Mariana, Brooklin, Moema e Lapa.
A La Braciera também opera com restaurantes convencionais, mas coloca suas fichas mesmo nas dark kitchens. “A lucratividade na entrega é menor do que no salão, mas o volume de pedidos é muito maior. Isso faz com que o delivery traga mais faturamento que a operação convencional.”