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Fonte: Migalhas
STJ afirma que imóvel doado por programa habitacional, ainda que em nome de um cônjuge, é bem comum, reforçando o direito à moradia da família.
O STJ reafirmou, recentemente, entendimento de grande relevância para o Direito de Família e para as políticas públicas habitacionais, de que imóveis doados por programas sociais com finalidade de moradia, ainda que formalmente registrados em nome de apenas um dos cônjuges, devem ser considerados bens comuns do casal. A decisão foi proferida pela 3ª turma, no julgamento do REsp 2.204.798/TO¹.
A decisão foi proferida em divórcio litigioso no qual a ex-esposa pleiteava a partilha de imóvel doado pelo Governo do Estado do Tocantins exclusivamente ao ex-marido, no âmbito de programa de regularização fundiária, na constância do casamento, regido pela comunhão parcial de bens. As instâncias ordinárias negaram a partilha, fundamentando-se na literalidade do art. 1.659, I, do CC, que exclui da comunhão os bens adquiridos por doação² sem cláusula de comunicabilidade.
O STJ, contudo, reconheceu a necessidade de uma interpretação finalística e socialmente comprometida da norma.
A decisão destacou que programas habitacionais com natureza assistencial são dirigidos à entidade familiar e têm como foco a efetivação do direito constitucional à moradia. A concessão de tais benefícios se dá não apenas com base em critérios individuais, mas levando em conta a renda e a composição do núcleo familiar, evidenciando a destinação coletiva da doação. Assim, a titularidade formal do bem em nome de apenas um dos cônjuges não afasta sua natureza comum, especialmente quando a moradia serviu ao casal durante o casamento e foi concedida em razão das condições socioeconômicas da família como um todo.
A decisão também reconhece que o entendimento contrário acaba por desconsiderar a lógica da comunhão parcial de bens, na qual se presume o esforço conjunto (direto ou indireto) dos cônjuges na formação do patrimônio. Mais do que isso, a exclusão do bem com base em sua formalização em nome de um único cônjuge ignora o contexto social e o espírito do programa habitacional, que visa garantir habitação digna e estabilidade familiar, especialmente às famílias em situação de vulnerabilidade.
Ao relativizar a regra da incomunicabilidade nos casos de doação estatal vinculada à política pública de moradia, o STJ ratifica o compromisso constitucional com o valor da dignidade humana, com o direito à moradia e com a equidade patrimonial no fim das relações conjugais. Como bem pontuado no voto da ministra relatora Nancy Andrighi: "a doação do bem no âmbito do programa habitacional deve ser interpretada como feita em favor da entidade familiar".
Além disso, a decisão está alinhada com a legislação atual. A lei 14.620/23, que rege o novo Minha Casa Minha Vida, já prevê a priorização da mulher como titular nos contratos habitacionais e, na hipótese de dissolução da união, a atribuição do imóvel a ela, salvo exceções³. O julgamento do STJ amplia essa lógica, reconhecendo que, independentemente do gênero e da formalidade da titularidade, a finalidade social da moradia deve prevalecer como critério para definição da partilha.
Não é a primeira vez que a Corte Superior julga no mesmo sentido. No julgamento do REsp 1.494.302/DF, a 4ª turma já havia reconhecido que o direito de uso de imóvel concedido por ente público poderia ser partilhado mesmo quando formalizado em nome de apenas um dos companheiros. Naquela ocasião, ficou assentado que, ainda que só um dos cônjuges constasse no contrato, ambos foram contemplados pelo programa social e, portanto, o bem deveria ser partilhado.
Tribunais, como o do Distrito Federal, já vêm acompanhando o entendimento firmado pelo STJ, no sentido de privilegiar a proteção do núcleo familiar⁴.
Em sentido contrário, há Tribunais que adotam interpretação mais formalista. O TJ/MG, por exemplo, já proferiu decisão⁵ reconhecendo a incomunicabilidade do bem doado pela municipalidade quando apenas um dos cônjuges consta no contrato, a pretexto de que:
(i) "a despeito de objetivar prestigiar o núcleo familiar, da escritura que instrumentalizou o contrato de doação não consta qualquer previsão no sentido de que a transferência ocorreu em benefício do casal. Foi contemplada, vale repetir, apenas o cônjuge virago."; e
(ii) "...ainda que se trate de programa habitacional direcionado ao núcleo familiar, não se afigura possível desvirtuar os termos, ou mesmo a natureza do contrato celebrado entre a requerente e a municipalidade.".
Para o TJ/MG, permitir uma interpretação extensiva, nesses casos, implicaria desconsiderar a natureza unilateral e gratuita da doação, feita apenas à parte autora, sem qualquer obrigação recíproca, o que tornaria o bem incomunicável, a teor do CC.
Embora alguns tribunais sustentem a incomunicabilidade do bem com base na titularidade formal e na legislação civil, o posicionamento do STJ aponta para uma interpretação mais condizente à função social da moradia.
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2 Art. 1.659. Excluem-se da comunhão: I - os bens que cada cônjuge possuir ao casar, e os que lhe sobrevierem, na constância do casamento, por doação ou sucessão, e os sub-rogados em seu lugar.
3 Art. 10. Os contratos e os registros efetivados no âmbito do Programa serão formalizados, prioritariamente, no nome da mulher e, na hipótese de ela ser chefe de família, poderão ser firmados independentemente da outorga do cônjuge, afastada a aplicação do disposto nos arts. 1.647, 1.648 e 1.649 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).
4 TJDF. Recurso de apelação n.º 0705181-34.2017.8.07.0014, Rel. José Divino, j. 26/08/2020.
5 TJMG. Recurso de apelação n.º 1.0000.23.261073-3/001, Rel. Francisco Ricardo Sales Costa, j. 24/11/2023.