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Fonte: Diário Agrícola | AgroPlanning
O processo administrativo de titulação de territórios quilombolas é um instrumento previsto no ordenamento jurídico brasileiro, destinado a concretizar o direito à terra de comunidades remanescentes de quilombos, conforme estabelece o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Federal de 1988. Esse processo visa a assegurar a posse definitiva às comunidades tradicionais sobre os territórios que historicamente ocupam, protegendo sua reprodução física, cultural, econômica e social.
A regularização fundiária quilombola segue diretrizes estabelecidas no Decreto nº 4.887/2003 e na Instrução Normativa INCRA nº 57/2009. Dentre as etapas desse procedimento, destaca-se a elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), documento essencial para a instrução processual e futura titulação.
O RTID é composto por quatro partes principais: o Relatório Antropológico, o Relatório Fundiário, a Planta e o Memorial Descritivo. O Relatório Antropológico tem a função de comprovar a existência da comunidade quilombola e sua relação tradicional com o território, o Relatório Fundiário descreve os imóveis vinculados à comunidade, a Planta delimita graficamente o território e o Memorial Descritivo fornece sua descrição técnica.
A elaboração do RTID é, portanto, um ato técnico-administrativo de elevada complexidade e relevância jurídica, pois constitui o fundamento para atos expropriatórios e para a titulação definitiva das terras. Sua confecção deve observar critérios técnicos rigorosos, pautados em metodologia transparente, documentação verificável e imparcialidade dos agentes envolvidos.
A ausência de rigor técnico, a insuficiência das fontes apresentadas e a inobservância das diretrizes normativas geram insegurança jurídica e comprometem a legitimidade dos atos administrativos. Soma-se a isso um aspecto de extrema relevância: o viés ideológico detectado em alguns dos profissionais responsáveis pela elaboração do RTID, que, não raras vezes, contamina tecnicamente a produção do relatório e restringe a isenção necessária na condução do processo administrativo.
O RTID deve ser produzido com base em critérios científicos e legais, com respeito às diretrizes estabelecidas no artigo 10 da Instrução Normativa INCRA nº 57/2009, devendo conter, entre outros aspectos: a descrição da metodologia adotada, o levantamento da ocupação histórica e atual, o mapeamento dos vínculos sociais e econômicos com a terra e a fundamentação da área proposta, sempre com respaldo técnico e documental.
Uma das maiores dificuldades enfrentadas pelos particulares na contestação ao RTID é a ausência de parâmetros científicos claros na elaboração do Relatório Antropológico. Com frequência, os documentos produzidos omitem a descrição precisa das entrevistas realizadas, dos dados coletados e dos critérios técnicos adotados para validar a memória coletiva como elemento probatório.
Essa opacidade compromete não apenas a análise crítica por parte dos afetados, mas também inviabiliza a produção de contraprovas técnicas — cerne da ampla defesa em qualquer procedimento contencioso ou de impacto patrimonial. Sem a íntegra dos dados e a explicação metodológica, não há como aferir a robustez ou a integridade do estudo apresentado, notadamente porque, em regra, não é franqueado ao particular o acompanhamento do trabalho de campo.
Apesar da centralidade da história local e da comprovação da ocupação tradicional, muitos RTIDs limitam-se a reproduzir narrativas orais de alguns membros da comunidade, sem suporte em documentos, registros históricos ou análises bibliográficas específicas. Isso vai de encontro à exigência expressa da IN INCRA nº 57/2009, que impõe a conjugação de diversas fontes — orais, escritas e visuais — para embasar a delimitação da área.
Além disso, a ausência de fontes externas à comunidade impede que o relatório seja compreendido como uma análise objetiva, tornando-o excessivamente dependente de memórias subjetivas, que frequentemente se mostram imprecisas, contraditórias ou prejudicadas pelo tempo.
Outro ponto que merece atenção especial é a comum contaminação ideológica na produção do RTID. Em grande parte dos casos, os profissionais responsáveis pela elaboração do relatório demonstram posicionamento prévio de defesa das pretensões territoriais da comunidade quilombola, mesmo antes da análise técnica das evidências. Esse comportamento compromete a neutralidade que se espera de uma investigação administrativa que, por definição, deveria ser isenta.
Há situações em que os autores do RTID assumem posturas incompatíveis com a função pública de mediação técnica, manifestando-se publicamente ou no próprio relatório de maneira militante, sem o necessário distanciamento analítico. Em alguns casos, os mesmos técnicos que redigem o RTID são incumbidos de analisar as contestações apresentadas pelos particulares, o que, além de afrontar o princípio da imparcialidade, representa violação direta ao devido processo legal.
Esse tipo de atuação transforma o relatório em um instrumento político-ideológico e não técnico-administrativo, subvertendo sua finalidade original. Ao perder a condição de documento neutro, o RTID se converte em peça de defesa de um dos lados do litígio, o que compromete sua legitimidade e pode ensejar a nulidade do procedimento.
O direito de contestação ao RTID, garantido pela Constituição Federal, pela Lei nº 9.784/1999 e pela IN INCRA nº 57/2009, não pode ser reduzido a uma mera formalidade. Os particulares afetados pelo procedimento devem ter acesso a todos os documentos que compõem o processo, devem ser previamente informados sobre as diligências de campo e ter o direito de acompanhar os trabalhos técnicos com assistentes próprios.
Contudo, tem sido recorrente a negação desses direitos, com justificativas infundadas ou interpretações restritivas da legislação. A negativa de participação na instrução, a omissão na resposta a petições e a ausência de apreciação técnica imparcial das contestações violam os princípios da ampla defesa, contraditório substancial, imparcialidade administrativa e segurança jurídica.
Diante de vícios substanciais — como ausência de metodologia, omissão de fontes, viés ideológico e desrespeito ao contraditório —, o RTID perde sua validade jurídica. A nulidade do relatório contamina todo o processo administrativo, comprometendo qualquer ato que tenha por base as conclusões nele contidas, viabilizando a impugnação judicial dos atos.
Para a superação desses vícios, é imperioso que a elaboração do RTID siga rigor técnico, com auditoria metodológica e documental, os responsáveis técnicos atuem com isenção, abstendo-se de manifestações que comprometam sua neutralidade, os particulares afetados sejam incluídos na fase instrutória, com possibilidade de manifestação eficaz e os órgãos decisórios do INCRA promovam a separação entre os que elaboram e os que julgam as peças técnicas, promovendo a análise real e isenta das contestações e recursos.
A verdade é que, conquanto a contestação ao RTID seja um direito fundamental dos particulares afetados por processos demarcatórios de terras quilombolas, a ausência de critérios técnicos claros, a omissão de fontes, o viés ideológico de alguns agentes públicos e o desrespeito ao contraditório transformam esse direito em uma mera formalidade protocolar.
A defesa do patrimônio cultural e territorial das comunidades quilombolas é um valor constitucional. Mas não pode se sobrepor aos direitos fundamentais de outros cidadãos, como o direito à propriedade, ao devido processo legal e à tutela jurisdicional efetiva. O equilíbrio entre esses valores passa, necessariamente, por processos administrativos justos, técnicos e imparciais, o que impõe a urgente revisão da forma como os RTIDs vêm sendo elaborados, de modo que, atendam sua função atendo-se à legalidade, sem desvios de qualquer natureza.