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Fonte: Correio Braziliense
Hospital de Base registrou 36 acidentes de abril a agosto, mas número pode ser bem maior, pois não inclui casos atendidos na rede privada e em outras unidades. Especialistas alertam para a falta de regulação, de fiscalização e de educação no trânsito
Os patinetes elétricos estão cada vez mais presentes nas ruas do Distrito Federal, e, com eles, os acidentes. A cada quatro dias, uma pessoa se fere utilizando o equipamento, segundo dados do Instituto de Gestão Estratégica de Saúde do Distrito Federal (Iges). De abril a agosto deste ano, foram 36 registros no Hospital de Base (HBDF). Mas o número pode ser bem maior, já que unidades não administradas pela entidade e a rede particular não fazem essa estatística, o que torna as demais vítimas completamente invisíveis.
O último caso foi na quarta-feira, quando dois adolescentes de 16 anos ficaram feridos após serem atropelados por um carro enquanto andavam juntos em um patinete elétrico, na W3 Sul. Uma das vítimas apresentava fratura na perna esquerda e sangramento na cabeça. A outra foi encontrada consciente, mas desorientada, com suspeita de traumatismo cranioencefálico.
Até julho, o DF tinha mais de 240 mil usuários cadastrados e um total de 2 mil patinetes em operação no Plano Piloto, em Águas Claras, no Sudoeste, no Cruzeiro e no Noroeste. O serviço é fruto de uma parceria entre a Semob-DF e a empresa JET, que mantém quase 1.200 estações virtuais na capital federal. A partir de setembro, a empresa Whosh também estará credenciada para oferecer o serviço de compartilhamento, ampliando ainda mais a frota no DF. Mas o aumento na quantidade de patinetes nas ruas do DF não tem sido acompanhado de uma regulação eficaz para o trafégo desses equipamentos.
Para tentar reverter esse quadro, e diante dos casos de acidentes recentes, a Secretaria de Mobilidade do Distrito Federal (Semob) afirma que vai se reunir com os órgãos de fiscalização e com a operadora responsável pelo serviço, a empresa JET, para discutir a ampliação das ações de segurança e combater o uso indevido dos equipamentos.
Quem utiliza os equipamentos regularmente, como o servidor público Filipe Figueiredo, 26 anos, diz que o patinete elétrico já faz parte da rotina. "Todos os dias, eu pego o metrô até a rodoviária e, de lá, sigo de patinete. É bem mais rápido do que ir a pé, e eu acho tranquilo, mas depende da pessoa".
Por causa da falta de segurança, ele acredita que o equipamento não é para todo mundo. "Tem que ter cuidado, porque é rápido e, em alguns trechos esburacados, balança bastante", contou. Para ele, a revitalização das ciclovias aumentaria a segurança de quem usa o meio de microtransporte.
Impacto
Mesmo diante do perigo, segundo moradores de Águas Claras, nas regiões próximas aos bares da cidade é comum ver jovens subindo nos patinetes depois de ingerir bebidas acoólicas. Apesar de ser proibido circular sob efeito de álcool, eles seguem pelas ruas e calçadas, colocando pedestres, motoristas e a si mesmos em risco.
Comportamentos assim podem ajudar a explicar o aumento em atendimentos emergenciais, e o Hospital de Base, referência em traumas, já percebeu o impacto. Segundo o chefe da ortopedia, o médico Rodrigo do Carmo Silva, a maioria dos atendidos é homem, entre 18 e 40 anos, e os acidentes acontecem principalmente na área central de Brasília. "Os traumas mais comuns envolvem fraturas nos membros superiores e inferiores, muitas graves, inclusive, fraturas expostas. A média de internação (após um acidente) é de cerca de 14 dias", explica.
E o problema não para na internação. Os ambulatórios também ficam sobrecarregados, pois, segundo o chefe da ortopedia, cada paciente precisa de várias consultas de acompanhamento, fisioterapia e avaliação de feridas, o que aumenta a demanda da equipe e pressiona o sistema.
Ele reforça que os números registrados pelo Hospital de Base não refletem totalmente a realidade. "Temos duas situações importantes: primeiro, a maioria dos atendimentos envolve contusões simples, que também sobrecarregam a emergência; e, segundo, há pacientes com plano de saúde que são atendidos no setor privado", avalia.
Legislação
De acordo com o Departamento de Trânsito do DF (Detran-DF), a legislação de trânsito prevê que cada equipamento deve ser utilizado por apenas uma pessoa. E apesar de não haver obrigatoriedade legal, o uso de capacete ciclístico e de equipamentos de proteção ao conduzir um patinete elétrico é recomendado.
No DF, não há previsão de multa para quem descumpre as regras de circulação com patinetes, mas o órgão afirma que pode apreendê-los, quando são utilizados de forma indevida. De acordo com a lei, o uso de patinetes não é permitido nas faixas de rolamento das vias urbanas arteriais e de trânsito rápido, nem em rodovias e estradas rurais, onde os limites de velocidade são superiores a 40 km/h.
A Semob afirma monitorar o serviço de patinetes e bicicletas compartilhadas no DF e notifica as empresas sempre que há irregularidades. Disse, ainda, que a empresa JET mantém uma equipe de colaboradores nos principais pontos de fluxo de patinetes elétricos para coibir quaisquer práticas irregulares.
"Limbo jurídico"
A ausência de normas claras deixa condutores e autoridades sem orientação, criando um cenário no qual os acidentes são inevitáveis. O professor David Duarte Lima, doutor em segurança no trânsito e professor da Universidade de Brasília (UnB), explica que a primeira razão para os sinistros é, justamente, a ausência de regras claras.
"Ninguém sabe se a pessoa que está usando patinetes pode andar na calçada, se pode atravessar a rua na faixa e os carros têm que parar. Não existem regras para isso, o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) não trata disso e o Detran e os demais órgãos ficam com mãos atadas", afirma. Diante da ausência de regras claras, o professor afirma que a segunda causa de acidentes é a dificuldade de fiscalizar. "É muito difícil fiscalizar e não há esclarecimento para as pessoas sobre como usar".
O professor Paulo César Marques, da UnB, destaca o "limbo jurídico" criado pelo CTB, que não reconhece patinetes como veículos. "Eles podem circular em ciclovias, mas quando não há, acabam nas calçadas, gerando conflito com pedestres", explica. Para ele, não basta criar infraestrutura segregada: o foco deve ser na educação e na sensibilização dos condutores de patinetes. "O essencial é que as pessoas convivam de forma civilizada, respeitando limites de velocidade e o espaço do outro", avalia. O professor ressalta que a fiscalização é limitada, e a falta de regras claras contribui para acidentes.
No Congresso Nacional, pelo menos três projetos de lei tentam regulamentar o uso dos patinetes elétricos: PL 2.606/2019, PL 3.345/2019 e PL 4.135/2019. A tramitação lenta mantém os equipamentos em um "limbo jurídico", sem reconhecimento como veículos no Código de Trânsito.
Proibições
O Correio testou o aplicativo da JET, responsável pelos patinetes elétricos que circulam no DF, e encontrou rapidamente as regras básicas de segurança: não é preciso ter CNH, a velocidade indicada é de 20 km/h, é recomendado o uso de capacete (não fornecido pela empresa) e roupas refletivas, além de orientações sobre onde os patinetes podem circular.
No aplicativo, também são mencionadas proibições como andar em dupla, usar o equipamento após o consumo de álcool e permitir o uso por menores de 18 anos. As regras aparecem tanto nos termos de uso quanto em vídeos curtos, antes de cada viagem, e a empresa afirma manter instrutores nos pontos de maior fluxo.
No entanto, essas medidas têm limites. A fiscalização não tem ajudado a diminuir os acidentes e o capacete não é fornecido. Quem acumula infrações pode ter a conta suspensa pelo aplicativo, mas não há garantia de que condutores inexperientes, ou que estejam sob efeito de álcool, respeitem essas regras.
O crescimento do uso de patinetes no DF exige atenção de todos os envolvidos, alerta André Pereira de Morais Garcia, advogado especialista em direito ambiental e ESG. "Culpamos sempre as empresas, mas elas vêm com a solução e deixamos de olhar para os usuários. É preciso exigir que andem com os equipamentos adequados, capacete, respeitando a velocidade da via", afirma.
Na prática, a experiência dos usuários mostra que nem todos estão preparados para o equipamento. Quem experimenta o serviço pela primeira vez, como o militar Gleidson Mendes, 23, percebe os desafios do dia a dia. "Foi a primeira vez que peguei e gostei muito. Achei seguro, não caí e segui a uma velocidade tranquila, mas não indicaria para pessoas que não se equilibram bem, para evitar acidentes", relatou.
Seguro
A empresa JET informou que todas as viagens de patinete elétrico contam com seguro para acidentes de trânsito, com um plano gratuito e outro pago, que amplia a cobertura.
De acordo com a empresa, é garantido o auxílio de saúde e responsabilidade civil. Para acionar o seguro, ou relatar eventuais ocorrências, os usuários podem contatar a JET por meio dos seguintes canais de atendimento virtual, 24 horas por dia, no próprio aplicativo, por e-mail (support@jetshr.com), por WhatsApp: (11) 91541-6915 e por Telegram (https://t.me/jetbr_apoio_bot).
Palavra de especialista
Regulação e infraestrutura
Davi Duarte, presidente do Instituto Brasileiro de Segurança (IST) e professor aposentado da UnB
Os patinetes elétricos se tornaram parte da paisagem urbana em Brasília e em outras cidades. Como as bicicletas, eles são rápidos, práticos e relativamente baratos, constituindo uma boa alternativa para deslocamentos curtos, de até 10km. Com a popularização, crescem também os acidentes e dúvidas sobre como esses veículos devem se integrar ao trânsito.
O Código de Trânsito Brasileiro (CTB) é omisso e não existem regras claras para a utilização de patinetes. Classificados como veículos de mobilidade individual autopropelidos, de forma geral seus condutores são equiparados a ciclistas em termos de circulação. Em princípio, ao subir em um patinete, a pessoa perde os direitos típicos do pedestre e passa a assumir deveres próprios de um condutor.
Na prática, porém, há uma zona cinzenta na legislação e uma imensa dificuldade na fiscalização. É preciso pensar nas possíveis soluções para o desafio dos patinetes. Acredito que o espaço adequado para circulação desses equipamentos são as ciclovias e ciclofaixas, e, na falta delas, a lateral direita de vias com velocidades abaixo de 40km/h. As calçadas poderão ser utilizadas desde que a velocidade não exceda a 10km/h.
Esse cenário exige que o poder público atue em duas frentes. Primeiro, na infraestrutura: expandindo ciclovias, melhorando calçadas e garantindo iluminação para deslocamentos noturnos. Segundo, na regulamentação e na educação: definindo limites de velocidade, áreas de circulação e promovendo campanhas de sensibilização para todos, principalmente quem usa patinetes.
Devem ser feitas campanhas que promovam o comportamento responsável, especialmente com relação à velocidade adequada às circunstâncias, e o uso de equipamentos de proteção. A atenção deve ser total: nada de usar celular ou fones de ouvido durante o trajeto, e muito menos levar duas pessoas no mesmo patinete. Quem conduz o equipamento deve ter em mente que os pedestres têm prioridade e nunca podem ser colocados em risco.
O futuro da mobilidade urbana passa por diversificar os meios de transporte. Patinetes, bicicletas, motos e carros precisam conviver em harmonia, e isso só será possível com infraestrutura adequada, leis claras e comportamentos seguros. O desafio agora é garantir que esse crescimento ocorra com segurança, reduzindo acidentes e integrando os patinetes de forma inteligente ao sistema viário.