Na mídia
Há pouco mais de um mês, o verbo "adultizar" sofreu o clássico efeito contemporâneo da internet: viralizou, após o influenciador Felipe Bressanim Pereira, o Felca, apresentar em seu canal no YouTube importante denúncia acerca da exposição sexualizada de menores nas redes sociais com vistas à obtenção de lucro (a chamada monetização de conteúdo), o que suscitou debate relevante sobre a responsabilidade dos responsáveis legais e das plataformas digitais que veiculam tais materiais.
O significado de "adultizar" é, em princípio, de fácil compreensão: tornar algo ou alguém adulto. Contudo, o enfoque atribuído ao termo na denúncia mencionada vai além, alcançando o Direito Civil (em especial no âmbito de família), o Direito Penal, a psicologia e outras ciências, consistindo, conforme explica a doutora Ana Beatriz Chamati¹, na "utilização da sexualização para comunicação, causando ruptura do processo natural de desenvolvimento" da criança ou do adolescente submetido à adultização.
Assim, para além da atribuição de características ou atividades adultas a crianças e adolescentes, a adultização - sobretudo aquela decorrente da exposição de menores nas redes sociais - muitas vezes se concretiza por meio da sexualização, culminando em exploração sexual infantil e no consumo de material pornográfico.
Adultizar não é crime, mas muitos dos efeitos decorrentes o são.
Este artigo tem por objetivo analisar os principais delitos associados à adultização de crianças e adolescentes, abrangendo tanto os tipos penais que responsabilizam quem capta e divulga tais cenas, quanto aqueles que punem os que as consomem para satisfazer a própria lascívia, culminando, ao final, na análise da lei Federal 15.221/25², publicada em 17/9, a qual versa sobre a proteção de crianças e adolescentes em ambientes digitais - diploma legislativo diretamente impulsionado pela denúncia mencionada no início deste estudo.
A denúncia trazida por Felca evidencia a exposição de crianças e adolescentes, em sua maioria meninas, utilizando roupas íntimas, de banho ou curtas, dançando ou em poses sugestivas, sendo notório que grande parte dos consumidores de tais conteúdos são homens adultos que os acessam para satisfação de sua lascívia.
A notoriedade se comprova, por exemplo, em levantamento do Wall Street Journal³, segundo o qual 92% (noventa e dois por cento) dos seguidores de determinada adolescente em sua rede social eram homens adultos.
Nesse contexto, merecem destaque os tipos penais previstos na lei Federal 8.069/90, ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente. O primeiro recai sobre quem produz; reproduz; dirige; fotografa; filma; ou registra, por qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente, conduta sujeita à pena de 4 (quatro) a 8 (oito) anos de reclusão. O dispositivo ainda prevê aumento da pena em um terço, caso o agente se prevaleça de relações domésticas, de coabitação ou hospitalidade com a vítima (art. 240, caput e §2º).
A exposição desse material em redes sociais encontra previsão específica no art. 241-A do ECA, que tipifica a conduta de quem "oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar por qualquer meio, inclusive por sistema de informática ou telemático, fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente", impondo pena de 3 (três) a 6 (seis) anos de reclusão.
Há, contudo, uma questão relevante: tais dispositivos preveem crime apenas quando há cena de sexo explícito ou pornográfica. O próprio ECA, em seu art. 241-E, define pornografia como "qualquer situação que envolva criança ou adolescente em atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou exibição dos órgãos genitais de uma criança ou adolescente para fins primordialmente sexuais".
Assim, a divulgação de vídeos nos quais crianças e adolescentes não simulam sexo, nem se encontram desnudas, em tese, não configuraria os crimes mencionados. Todavia, o STJ4 decidiu ser imprescindível analisar se, a despeito da ausência de nudez, as imagens possuem finalidade sexual, se apresentam poses sensuais ou indícios de exploração sexual, obscenidade ou pornografia. Havendo tais elementos, haverá enquadramento como cena pornográfica.
Na mesma linha, Felipe Soares Tavares Morais4 ensina:
"Configura-se como pornografia infantil a retratação de crianças (ainda que vestidas) em poses extremamente sensuais, com insinuações sexuais subliminares, bem como quando na posse de apetrechos eróticos. Há, então, um diminuto espaço - na verdade quase nenhum - para a existência de representação sexualizada de infantes."
Dessa forma, pais ou responsáveis que filmam crianças e adolescentes com intuito de sexualizá-los e divulgam tal material nas redes sociais podem incorrer nos crimes acima, cabendo ao julgador analisar caso a caso, a fim de evitar que se puna toda e qualquer publicação distorcida por seguidores mal-intencionados, sem responsabilidade dos responsáveis legais.
A criança ou adolescente exposto a esse tipo de violência por pessoa de seu núcleo familiar ou de confiança sofre sequelas para toda a vida. Conforme apontam Lara Dias Couto e Karin Aparecida Casarini5, os danos incluem mudanças comportamentais; amadurecimento precoce; dificuldade em estabelecer e manter vínculos afetivos; desorganização psíquica; problemas na percepção da imagem corporal; e prejuízos na formação da subjetividade.
No que se refere ao público consumidor do conteúdo fruto da adultização, há dois enquadramentos possíveis: os que captam o material em perfis alheios para trocas ou vendas e os que adquirem ou armazenam esse conteúdo. Ambos praticam crimes graves, incluídos no âmbito da pedofilia, previstos nos arts. 241-A5 e 241-B6 , ambos do ECA.
Para além da gravidade das condutas, a denúncia de Felca chama atenção para a possível conivência das plataformas digitais. Embora os termos de uso proíbam expressamente crimes de natureza sexual, observa-se, na prática, a tolerância à permanência de perfis de pedófilos que comentam abertamente em postagens de crianças e adolescentes, deixando inclusive links para canais com conteúdo criminoso, sem qualquer providência das empresas.
A comunicadora Sheili Caleffi7 apresentou denúncia semelhante, demonstrando a facilidade de identificar perfis de pedófilos em redes sociais, por meio do uso massivo de símbolos próprios da pedofilia para reconhecimento mútuo, publicações realizadas por tais agentes e páginas voltadas à divulgação criminosa, muitas delas públicas e inclusive impulsionadas pelos algoritmos das plataformas.
O cerne do problema recai, portanto, sobre a alegada impossibilidade técnica de monitoramento ativo do conteúdo pelas plataformas, o que as faria depender da denúncia de usuários para agir, ou sobre a hipótese de tolerância deliberada, decorrente da monetização e da popularidade algorítmica de conteúdos, ainda que evidentemente criminosos.
Diante disso, tornou-se urgente maior proteção às crianças e adolescentes em ambientes virtuais, o que motivou a promulgação da lei Federal 15.221/252, em 17/9, dispondo sobre a proteção desse grupo em ambientes digitais.
A lei estabelece proteção em ambientes virtuais destinados a crianças e adolescentes, ou em que seja provável o acesso desse público, definindo tal hipótese em seu art. 1º, parágrafo único. Entre as medidas, destaca-se o art. 6º, que impõe aos fornecedores de produtos e serviços de tecnologia da informação, voltados ou acessíveis a menores, a obrigação de adotar, desde a concepção até a operação, medidas razoáveis para prevenir e reduzir riscos de exposição a conteúdos nocivos, entre os quais se incluem exploração e abuso sexual; violência, bullying virtual e assédio; indução a comportamentos prejudiciais à saúde física ou mental (como automutilação, suicídio ou uso de drogas); promoção de jogos de azar, produtos proibidos ou de venda restrita a menores; práticas publicitárias enganosas capazes de gerar danos financeiros; e a disponibilização de conteúdo pornográfico.
A norma também prevê monitoramento de conteúdos para verificar a adequação etária, mecanismos confiáveis de aferição de idade, dispostos no capítulo IV, com ênfase na criação de interfaces de monitoramento parental e, no capítulo intitulado "Da Publicidade em Meio Digital", a expressa vedação à monetização ou impulsionamento de conteúdos que retratem menores de forma erotizada ou inseridos em contextos sexuais adultos.
No tocante à exploração sexual, a lei determina que fornecedores de tecnologia no Brasil devem remover e comunicar às autoridades competentes, nacionais e internacionais, qualquer conteúdo relacionado a exploração, abuso, sequestro ou aliciamento de crianças e adolescentes, além de enviar relatórios de notificação dentro dos prazos regulamentares. Também obriga a manutenção, nos prazos do marco civil da internet (ou superiores, se requisitados), de dados e metadados relacionados ao conteúdo e aos usuários responsáveis, garantindo provas para eventual investigação.
Por fim, o art. 35 estabelece sanções em caso de descumprimento, assegurando devido processo legal, contraditório e ampla defesa. As penalidades vão desde advertência com prazo de correção até 30 dias, passando por multa de até 10% do faturamento do grupo econômico no Brasil (ou valores fixados por usuário, limitados a cinquenta milhões de reais por infração), até medidas mais severas, como suspensão temporária ou proibição de atividades. A gradação da sanção deve observar critérios como gravidade da infração, extensão do dano, reincidência, capacidade econômica do infrator e impacto social da medida.
A fiscalização ficará a cargo da autoridade administrativa autônoma de proteção dos direitos de crianças e de adolescentes no ambiente digital, a qual será de competência da já existente ANPD - Autoridade Nacional de Proteção de Dados.
A lei entrará em vigor em março de 2026 e deverá ser regulamentada por decreto.
O acompanhamento das medidas implementadas pelas plataformas digitais, com vistas ao cumprimento do Estatuto Digital da Criança e do Adolescente (lei 15.211/25), passa a integrar a agenda institucional do Ministério Público Federal, que instaurou procedimento administrativo para monitorar tanto os mecanismos já adotados quanto aqueles que se projetam para os próximos meses. O foco inicial recai sobre as quatro plataformas de maior alcance entre o público infantojuvenil no Brasil, especialmente, WhatsApp, YouTube, Instagram e TikTok, as quais concentram relevante parcela da interação social de crianças e adolescentes. A iniciativa revela não apenas a necessidade de verificação da adequação de ferramentas destinadas à aferição de idade, à supervisão parental e ao controle de acesso a conteúdos nocivos (violência, exploração sexual, pornografia, jogos de azar, assédio e práticas lesivas à saúde), mas também a importância de se examinar a efetividade das ações de prevenção, retirada de material ilícito e comunicação às autoridades competentes.
A análise desenvolvida permite concluir que, embora a adultização em si não configure ilícito penal, os seus efeitos concretos se projetam diretamente no campo do Direito Penal, do Direito Civil e da proteção integral assegurada pelo ordenamento jurídico brasileiro. A exploração da imagem de crianças e adolescentes em contextos erotizados ou sexualmente sugestivos, ainda que não envolva nudez ou simulação explícita de ato sexual, encontra amparo nos tipos penais previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como no entendimento consolidado do STJ acerca da caracterização de pornografia infantil. Ademais, os danos psicológicos e sociais decorrentes da exposição precoce à sexualização reafirmam a necessidade de atuação interdisciplinar e preventiva, envolvendo não apenas a responsabilização jurídica, mas também políticas públicas de conscientização e fortalecimento da rede de proteção.
Por outro lado, a promulgação da lei 15.221/25 e a recente atuação do Ministério Público Federal no acompanhamento das medidas a serem implementadas pelas plataformas digitais sedimenta a preocupação em tornar mais efetiva a proteção de crianças e adolescentes em ambientes virtuais. O desafio que se impõe, contudo, consiste em assegurar que tais comandos normativos sejam acompanhados de fiscalização eficaz, transparência das empresas de tecnologia e comprometimento dos responsáveis legais, de modo que a tutela integral prevista na CF/88 seja concretizada também no espaço digital.
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1 disponível aqui.
2 disponível aqui.
3 Disponível aqui.
4 Informativo 729: Estatuto da Criança e do Adolescente. Arts. 6º, 240, 241-B e 241-E da Lei n. 8.069/1990. Expressão "cena de sexo explícito ou pornográfica". Exposição de órgãos genitais das vítimas. Prescindibilidade. Contexto obsceno, poses sensuais, e a finalidade sexual das imagens. Suficiência. Disponível aqui.
5 Art. 241-A. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar por qualquer meio, inclusive por meio de sistema de informática ou telemático, fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente.
Pena - reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.
6 Art. 241-B. Adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia, vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente.
Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
7 disponível aqui.
ANPD. Disponível aqui.
Caleffi, Sheili. Denúncia sobre perfis de pedofilia nas redes sociais.
Chamati, Ana Beatriz. Definição de adultização. Disponível aqui.
CHILDHOOD. Glossário: Abuso Sexual, s. d. Disponível aqui. Acesso em: 18 set. 2025
Couto, Lara Dias; Casarini, Karin Aparecida. Reflexões sobre a relação mãe-filho em um contexto de violência sexual infantil intrafamiliar: um estudo de caso. REFACS, Uberaba, MG, v. 9, n. 1, p. 170, 2021. DOI: Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2025.
Informativo 729 STJ. Disponível aqui.
Lei Federal nº 15.221/2025, publicada em 17 de setembro de 2025.
Lei Federal nº. 8069/90. ECA
MORAIS, Felipe Soares Tavares. Internet, Pornografia e Infância: a Criminalização da Posse de Pornografia Infantil. Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro, nº 64, abr./jun. 2017, p. 10.
MPF. Disponível aqui.
NUCCI, Guilherme de S. Estatuto da Crianca e do Adolescente - 6ª Edição 2025. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024. E-book. p.651-658. ISBN 9788530995751. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2025.
ROSSATTO, Luciano A.; LÉPORE, Paulo E.; CUNHA, Rogério S. Estatuto da Criança e do Adolescente - 12ª Edição 2020. 12. ed. Rio de Janeiro: Saraiva Jur, 2020. E-book. p.65. ISBN 9786555590814. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2025.
SYDOW, Spencer Toth. "PEDOFILIA VIRTUAL" E CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS SOBRE A LEI. Revista Liberdades. São Paulo, n°1, p. 46-50, maio 2009.
Wall Street Journal, levantamento sobre seguidores de adolescentes.