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O desafio climático da governança urbana

publicado em 23/10/2025 15:03

Fonte: Valor Econômico

Brasil, embora rico em diagnósticos e planos, continua a tropeçar na transição entre o papel e a prática

A transição para cidades inteligentes tornou-se um dos eixos centrais da política climática europeia. No âmbito do Horizon Europe, a Missão para Cidades Climaticamente Neutras e Inteligentes visa transformar 100 cidades em laboratórios de neutralidade carbónica até 2030. Lisboa e Porto estão entre as selecionadas. O programa exige a assinatura de Contratos de Cidade Climática, pactos multilaterais que integram metas de descarbonização, mobilidade sustentável, gestão energética e uso do solo com planos de investimento e indicadores mensuráveis. Apesar da ambição, auditorias do Tribunal de Contas Europeu apontam fragmentação: as soluções desenvolvidas sob o programa Lighthouse - como as de Barcelona, Amesterdão e Viena - alcançaram bons resultados locais, mas com baixa replicabilidade devido à ausência de métricas comuns e à dificuldade de coordenação multinível.

Para corrigir esse cenário, a Comissão Europeia apresentou o Quadro de Interoperabilidade para Cidades e Comunidades Inteligentes (“EIF4SCC”), que amplia a noção tradicional de interoperabilidade técnica para cinco dimensões: técnica, semântica, organizacional, jurídica e cultural. Essa última, inédita em políticas digitais, reconhece que a cultura local e a diversidade urbana são elementos decisivos para o sucesso das estratégias climáticas. O EIF4SCC também tenta evitar o chamado vendor lock-in, dependência tecnológica que limita a autonomia digital das cidades. Em paralelo, instrumentos regulatórios como o Regulamento Europeu de Inteligência Artificial (“AI Act”) e o Regulamento Geral de Proteção de Dados (“RGPD”) consolidam a UE como referência global em governança algorítmica e proteção de dados urbanos. Ambos impõem regras rigorosas de transparência e avaliação de risco, essenciais para garantir que a digitalização da gestão pública não comprometa direitos fundamentais nem amplie desigualdades.

Cidades como Barcelona e Lisboa exemplificam a integração entre tecnologia e política climática. A capital catalã, pioneira em “superquarteirões” (Superblocks), reduziu emissões e ampliou áreas verdes e caminháveis. Lisboa, por sua vez, tornou-se caso de estudo da Agência Europeia do Ambiente ao vincular o orçamento municipal de mobilidade à redução de CO₂ e à criação de “corredores verdes”. Já Helsínquia destaca-se por tratar o envolvimento cidadão como pilar da transição energética, incorporando consultas digitais e mecanismos de co-criação nas decisões urbanas. Essas cidades demonstram que a inovação só é inteligente quando gera resultados ambientais e sociais tangíveis.

Em Portugal, a Estratégia Nacional para Territórios Inteligentes (“ENTI”), lançada em 2023, representa o esforço de traduzir esses princípios europeus em realidade nacional. Coordenada pela Agência para a Modernização Administrativa, a ENTI abrange 16 iniciativas e 31 recomendações que buscam integrar políticas de mobilidade, energia, resíduos e digitalização. O Porto surge como referência prática: desde 2015, a Plataforma Urbana do Porto reúne dados de sensores, sistemas de tráfego, recolha de resíduos e serviços públicos numa arquitetura interoperável, permitindo decisões rápidas e redução de custos. O modelo inspira outras cidades portuguesas e reforça o papel do país como mediador entre o know-how europeu e os desafios latino-americanos.

No Brasil, o contraste é evidente. Embora haja avanços normativos - Política Nacional sobre Mudança do Clima (Lei Federal 12.187/2009), Carta Brasileira de Cidades Inteligentes e LGPD, a execução segue tímida. Em São Paulo, o PlanClima e o Plano Municipal de Arborização Urbana (PMAU) diagnosticam com precisão as fontes de emissões e as desigualdades territoriais da copa arbórea, mas a implementação é lenta e fragmentada. O transporte responde por cerca de 70% das emissões municipais e segue dependente de combustíveis fósseis, enquanto a cobertura vegetal permanece concentrada em bairros de renda alta. Em outras capitais, como Rio e Curitiba, o padrão se repete: planos bem estruturados, porém com baixo grau de execução e frágil integração metropolitana.

A COP-30, que será realizada em Belém do Pará em 2025, surge como momento-chave para reposicionar o país no debate global. A conferência poderá impulsionar compromissos concretos como metas de transporte sustentável nas NDCs urbanas, ampliação da arborização e criação de mecanismos de financiamento climático para cidades médias. Ao mesmo tempo, abre-se uma oportunidade inédita para alinhar planos climáticos locais a modelos de financiamento híbridos (blended finance) já testados na Europa, unindo bancos de desenvolvimento, fundos verdes e capital privado.

A integração Brasil–Europa pode encurtar caminhos. A harmonização entre LGPD e RGPD facilita parcerias tecnológicas seguras; a adoção de padrões abertos europeus permitiria interoperar dados sobre mobilidade, energia e qualidade do ar; e o uso de Contratos de Cidade Climática poderia transformar metas ambientais em compromissos executáveis, com indicadores de mitigação, adaptação e equidade. Cidades irmãs (city-to-city cooperation), podem despontar como plataformas de intercâmbio em mobilidade limpa, ruas sombreadas, drenagem verde e governança de dados.

No essencial, a lógica é clara: a tecnologia é um instrumento, não um destino. Uma cidade só é verdadeiramente inteligente se reduzir emissões, melhorar a qualidade do ar e devolver habitabilidade ao espaço público. A Europa avança com mecanismos de execução e métricas sofisticadas; o Brasil, embora rico em diagnósticos e planos, continua a tropeçar na transição entre o papel e a prática. O seu grande desafio é transformar ambição normativa em resultados tangíveis: arborizar periferias, eletrificar frotas e integrar a mobilidade ativa no desenho urbano. A COP-30 pode marcar esse ponto de inflexão o momento em que as promessas se tornam realidade. O que para a Europa representa um ajuste de governança, para o Brasil é um verdadeiro salto civilizacional.

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