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Fonte: Estadão
Deve-se assegurar a participação ativa dos proprietários ou possuidores das terras delimitadas pelo Incra durante toda a fase de elaboração do RTID
No Brasil, as comunidades quilombolas têm seus direitos territoriais reconhecidos e protegidos pelo Estado – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), artigo 68 –, cabendo ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) a responsabilidade de identificar, delimitar e titular as terras ocupadas por essas comunidades.
A fim de concretizar o compromisso com a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação desses territórios, foram instituídos, pelo Decreto n.º 4.887/2003 e pela Instrução Normativa (IN) Incra n.º 57/2009, os procedimentos necessários.
Com o estabelecimento das diretrizes e procedimentos próprios a serem adotados nesses processos administrativos demarcatórios, busca-se garantir que o processo seja conduzido de forma transparente e com a participação das comunidades e demais interessados envolvidos.
De acordo com os mencionados decreto e instrução normativa, o principal documento do procedimento demarcatório quilombola é o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), que deve ser elaborado por um grupo técnico interdisciplinar designado pela superintendência do Incra da região onde se encontrar localizada a comunidade.
Em resumo, o RTID é composto por relatório antropológico, levantamento fundiário, planta e memorial descritivo da área reivindicada e cadastro das famílias remanescentes, cujos critérios estão previstos no artigo 10.º da Instrução Normativa Incra n.º 57/2009.
Previamente à elaboração do RTID, cabe à Superintendência Regional do Incra identificar se a terra reivindicada pela comunidade quilombola se sobrepõe a áreas que estão sob posse ou domínio de terceiros. Caso positivo, esses proprietários ou ocupantes devem ser notificados com antecedência mínima três dias úteis ao início dos trabalhos de campo (IN Incra n.º 57/2009, artigo 10, parágrafo 1.º).
Além de conceder ciência prévia aos terceiros interessados, leia-se proprietários e possuidores de imóveis que possivelmente serão atingidos pela demarcação, tal disposição possibilita a participação efetiva no processo demarcatório, inclusive na produção de provas.
Essa exigência normativa está em consonância com o disposto no artigo 5.º, inciso LV, da Constituição federal, que determina que, aos “litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
Isso porque, sendo o procedimento de demarcação de terras quilombolas também regido pela Lei n.º 9.784/1999, que regula os processos administrativos, deve ser garantida a participação efetiva dos interessados durante todo o trâmite processual, inclusive e especialmente em sua fase de instrução, em observância ao devido processo legal, conforme também assegurado pelos artigos 2.º, caput e inciso X, 26, 28, 38 e 41 da referida lei.
Tanto é assim que, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n.º 3.239, que tratou da constitucionalidade do Decreto n.º 4.887/2003, o ministro Luiz Fux enfatizou que o referido decreto “foi cauteloso na construção de um devido processo demarcatório, zelando pela aplicação dos princípios constitucionais incidentes na hipótese, em especial o princípio da publicidade (Constituição, artigo 37, caput) e os princípios do contraditório e da ampla defesa (Constituição, artigo 5.º, inciso LV)”.
Nesse contexto, o contraditório e a ampla defesa garantidos ao particular não se esgotam e não podem esgotar-se com as protocolares intimações dos atos praticados no bojo do processo administrativo e com a apresentação de defesa após a finalização e aprovação do RTID (IN Incra n.º 57/2009, artigo 13), sendo impositivo o oferecimento da oportunidade de efetiva participação na instrução do procedimento demarcatório, em especial na construção dos documentos que compõem o RTID.
Como observa Fredie Didier Jr., “não adianta permitir que a parte simplesmente participe do processo. Apenas isso não é suficiente para que se efetive o princípio do contraditório. É necessário que se permita que ela seja ouvida, é claro, mas em condições de poder influenciar a decisão do órgão jurisprudencial” (Curso de Direito Processual Civil, 25.ª edição, Juspodivm).
E arremata, afirmando de maneira peremptória que “se não for conferida a possibilidade de a parte influenciar a decisão do órgão jurisdicional – e isso é o poder de influência, de interferir com argumentos, ideias, alegando fatos, a garantia do contraditório estará ferida. É fundamental perceber isto: o contraditório não se efetiva apenas com a ouvida da parte; exige-se a participação com a possibilidade, conferida à parte, de influenciar no conteúdo da decisão”.
Não é outro o entendimento do ministro Luiz Fux, ao observar, mutatis mutandis, que “o contraditório possui duas dimensões distintas e igualmente relevantes. A primeira se trata da dimensão formal, em que todo indivíduo no processo tem fala digna de consideração e tem, por conseguinte, o direito de ser ouvido no processo. Não se pode, nesse sentido, salvo nas exceções anteriormente mencionadas, suprimir a manifestação de uma parte sobre determinado ponto. Por sua vez, a segunda dimensão se proclama substancial, uma vez que consiste em atribuir à parte o definitivo poder de influenciar a decisão do magistrado que se depara sobre o processo” (Curso de Direito Processual Civil, 5.ª edição, Forense).
Tornando incontroverso o direito do particular à ativa participação no processo administrativo, o “Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que os atos da administração pública que tiverem o condão de repercutir sobre a esfera de interesses do cidadão devem ser precedidos de prévio procedimento no qual se assegure ao interessado o efetivo exercício do direito ao contraditório e à ampla defesa” (agravo regimental no Recurso Extraordinário n.º 807.970/PR, relator ministro Dias Toffoli, julgado em 19/12/2022).
Em julgado paradigma do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), foi assentado que o contraditório e a ampla defesa em processos judiciais ou administrativos vão além do simples direito de manifestação da parte, abrangendo também o direito de informação acerca dos atos praticados no processo e de ver seus argumentos considerados (Mandado de Segurança n.º 24.268-0/MG).
Para garantir o exercício do contraditório e da ampla defesa ao terceiro interessado no processo demarcatório quilombola, é imprescindível permitir que ele possa influenciar e modificar o conteúdo do RTID desde o momento em que ele for notificado acerca do início dos trabalhos de campo.
Em outras palavras, deve-se assegurar a participação ativa dos proprietários ou possuidores das terras delimitadas pelo Incra durante toda a fase de elaboração do RTID, permitindo a indicação de assistente técnico para acompanhamento dos trabalhos de campo e manifestação sobre todos os documentos elaborados pelo grupo técnico antes da análise e aprovação final pelo Comitê de Decisão Regional do Incra.
Em alguns poucos processos demarcatórios já é possível identificar o respeito ao contraditório pleno e ao devido processo legal, com a abertura de oportunidade ao particular de efetiva participação na fase de produção do RTID, o que, infelizmente, não é – como deveria ser – uma diretriz para a condução de todos os processos dessa mesma natureza.
Enfim, a efetiva participação dos particulares desde o início do processo administrativo é indispensável para que o procedimento seja justo e equitativo e, principalmente, legal e legítimo, respeitando os direitos constitucionais de todos os envolvidos. Caso contrário, a validade do procedimento demarcatório quilombola será comprometida, em razão da insanável nulidade do RTID, em virtude da violação aos princípios do contraditório e ampla defesa.
Espera-se que o Incra, enquanto órgão de Estado, dispa-se de qualquer viés ideológico que costuma nortear a condução de tais processos demarcatórios e, zelando pela legalidade de seus atos, não exclua o particular – como é comum acontecer – da produção do RTID e da condução do procedimento, garantindo-lhe o contraditório que, ao final, seguramente resultará em um desfecho de melhor qualidade e menos sujeito a ações judiciais que possam ocasionar a postergação da conclusão dos processos administrativos, em prejuízo das próprias comunidades quilombolas.